por Adriele Marchesini*
Graças às evoluções tecnológica e econômica, em cem anos, cada indivíduo terá de doar somente 15 horas semanais de trabalho para que todas as necessidades sociais sejam atendidas.
Essa previsão pode estimular um misto de emoções — satisfação e esperança pelo prognóstico de uma vida com mais tempo livre; tristeza ou até senso de injustiça por não sermos nós a usufruir dela. Mas um pouco mais de contexto nos leva ao bom e velho descrédito: a perspectiva foi apresentada em 1930, o que consequentemente coloca 2025 — ano em que ainda se debate o fim da escala 6×1 com a sutileza de uma guerra de foice — em uma posição muito distante da esperada. Que analista aparentemente tão pouco preparado faria uma projeção tão desconectada da realidade? A revelação não poderia ser mais aterradora: simplesmente um dos maiores economistas do século 20, o principal responsável por resgatar os Estados Unidos e, de quebra, o mundo ocidental, da crise de 1929. Ele mesmo, John Maynard Keynes.
O exercício de antever o futuro é o exercício do erro. Essa é uma verdade que precisamos admitir antes de nos arriscarmos a enxergar linhas que ainda não foram escritas. Se nem Keynes, com seu cérebro privilegiado e ferramental teórico e prático robusto, foi capaz de se aproximar da realidade fora de seu tempo, por que nos atreveríamos a tamanha ousadia?
No universo dos negócios e do trabalho, por necessidade. E no caso de uma entidade auto-organizada, como é a Associação Brasileira de Inteligência Artificial (Abria), por um senso de obrigação. É com a certeza sobre a incerteza do futuro, junto da convicção de ser nossa responsabilidade apoiar a construção de um caminho mais sólido para pisarmos, que anunciamos a criação do Comitê Futuro do Trabalho e Educação.
O grupo, que já teve duas reuniões preparatórias, terá seis encontros técnicos ao longo de 2025, começando em junho próximo, onde serão debatidos temas que consideramos essenciais a respeito do impacto da inteligência artificial, em especial a generativa, nos universos do trabalho e da educação. Ao final de cada debate, será divulgada uma nota à sociedade por meio dos nossos canais oficiais. Mais informações sobre a mecânica e composição do Comitê FTE você encontra aqui.
IA, Futuro do Trabalho e Educação: 3 eixos essenciais
Tecnologias não ocorrem no vácuo — elas chegam para contribuir em um complexo tecido social.
Tecnologias tampouco são deterministas — o que significa que uma coisa é o que elas podem fazer, outra é o uso social não só escolhido, como possível, feito delas.
Exatamente por isso, o Comitê FTE não se limita a olhar para o potencial da aplicabilidade da IA, mas busca entender, dentro do complexo contexto brasileiro, os potenciais efeitos e implicações de sua chegada.
Definimos um perímetro para trabalharmos neste primeiro ano de discussão, organizado em três eixos fundamentais: comportamento, cenário e efeito.
1) Comportamento
Este pilar considera a realidade dos indivíduos — alunos e profissionais — que se valem ou valerão do ferramental. Os dados são preocupantes e trazem questionamentos sobre a real capacidade de troca humano-máquina.
- Analfabetismo funcional: 17% dos formados no ensino médio e 12% das pessoas com diploma de graduação são incapazes de entender de textos simples a mais longos ou fazer de contas básicas àquelas com números maiores. Os dados são da pesquisa Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf).
- Fato ou fake: Brasil é o país, em uma lista de 21 nações, que menos sabe diferenciar notícias reais de falsas, com pontuação de 54%, segundo dados da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE). O topo da lista é ocupado pela Finlândia (66%).
- Fato x opinião: mais uma inabilidade de nossa população é a diferenciação entre fato e opinião, registrada em 67% dos jovens (OCDE).
- Spam de atenção: este é um estudo mais antigo, de 2015, mas ainda vale como referência. Segundo levantamento da Microsoft, o spam de atenção do indivíduo médio é de 8 segundos, menos do que o de um peixe dourado.
2) Cenário
Aqui englobamos tendências alheias à vontade individual, mas com potencial de reorganizar a ordem social.
- R.I.P. diploma: experiência e portfólio passam a ser mais importantes que diploma universitário para gigantes como Deloitte, Google, Accenture, Walmart e IBM, mostra esta reportagem da Forbes. Mais de 80% dos contratantes preferem provas práticas a certificados.
- Atividades do pensar: levantamento do Goldman Sachs mostra que dois terços das ocupações norte-americanas estão expostas à IA generativa e que, pela média, 25% das tarefas podem ser automatizadas. Profissões intelectuais, antes blindadas no processo de inovação, estão entre as principais atingidas.
- Reciclagem necessária: até 2030, 40% das habilidades profissionais serão transformadas, 92 milhões de postos de trabalho serão extintos e outros 170 milhões, com novas funções, serão criados. A perspectiva é do Fórum Econômico Mundial.
- Na base: Estados Unidos e China investem pesado em ensino de IA. No Brasil, Goiás se destaca ao ser o primeiro estado brasileiro a lançar plano de educação voltado ao tema.
- Automação x aumento: literatura aponta diferença entre inovação de automação, que corrói empregos e não cria postos, e a de aumento, que eleva a produtividade e cria profissões. Onde, e como, encaixar a IA, em suas versões discriminativa e generativa?
3) Efeito
Este é o campo mais intrincado e que deve ser olhado com cuidado, sem recair nem em expectativas milagrosas, nem em perspectivas catastróficas.
- Precisão e qualidade: a Saúde é um exemplo de setor no qual o uso de IA generativa melhora a assistência, reduz a carga de trabalho e minimiza erros médicos, além de melhorar a integração e a satisfação do paciente.
- Mais artificial, menos humana: apesar de deixar o profissional mais veloz, estudo da Microsoft mostra que a IA generativa pode levar ao atrofiamento cognitivo de profissionais.
- Perdas: O deskilling — como Harry Braverman (1970) explica as perdas de habilidades com a chegada de instrumentos tecnológicos no trabalho — podem ser técnicas e morais. O primeiro caso abrange a redução de repertório pelo fim de realização de atividades repetitivas do dia a dia. O segundo se refere às capacidades sociais — como as soft skills, que ganharam tanta projeção nos últimos anos —, que ficam comprometidas com a intermediação das relações pelo digital.
Mais perguntas que respostas
A inteligência artificial tem potencial enorme de colocar o Brasil no mapa global de inovação e gerar riqueza para toda a sociedade. Mas é uma tecnologia emergente, e como tal, suscita questionamentos que devem ser abordados de maneira séria, rigorosa e o mais completa quanto possível.
Nesse exercício do erro que é o de prever o futuro, começamos com mais perguntas do que respostas, mas com o inalterável compromisso de contribuir com as discussões sobre o impacto do uso de tecnologias de inteligência artificial nas dinâmicas do mercado de trabalho e do ensino — e isso sem recair na ideia de que a IA é uma solução mágica e, muito menos, que é o arauto do apocalipse.
* Jornalista há quase duas décadas, empreendedora há mais de dez anos e escritora de nascença, Adriele Marchesini tem especialização em análise econômica pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), MBA em marketing digital pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e é mestranda em Inteligência Artificial, Educação e Futuro do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP). Coautora de três livros publicados e editora de um quarto, é especializada em conteúdo narrativo para negócios, tendo apoiado mais de 100 marcas B2B em estratégias de posicionamento multiplataforma. Foi criadora e apresentadora do podcast de empreendedorismo Vale do Suplício e também atuou tanto em mídias de grande porte (Estadão, Infomoney) quanto especializadas (IT Forum, CRN Brasil). É membro do conselho consultivo da Associação Brasileira de Inteligência Artificial (Abria), onde criou e preside o Comitê de Futuro do Trabalho e Educação.